Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2335/06.0TMPRT-D.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
CONSULTA DO PROCESSO
MANDATÁRIO
PROGENITOR
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O carácter reservado do processo de promoção e protecção apenas permite a consulta do processo físico, na secretaria do tribunal onde se encontre, às pessoas e nos termos previstos no art.º 88.º da LPCJP.

II. Enquanto norma especial, esta norma não é afastada por outra disposição geral ou comum, nomeadamente pelo art.º 164.º, n.º 2, al. a), do CPC e art.º 27.º, n.º 1, al. a), da Portaria n.º 280/13, de 26 de Agosto.

III. Não tem direito à consulta electrónica do processo de promoção e protecção o mandatário/patrono dos pais do menor.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 2335/06.0TMPRT-D.P1.S1[1]



*

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:




I. Relatório

No processo de promoção e protecção referente à menor AA e em que é requerido o seu pai BB, este requereu, além do mais aqui irrelevante, que fosse concedida à sua patrona a consulta electrónica dos autos, nos termos do art.º 88.º da LPCJP, conjugado com o art.º 27.º da Portaria n.º 280/2013.

Esta pretensão foi indeferida por despacho de 27/5/2020, com o seguinte teor:

“…

No mais, vai indeferido o requerido acesso aos autos para consulta por parte do advogado do progenitor através do sistema informático oficial de apoio à actividade dos tribunais, denominado CITIUS.

É que tal possibilidade equivaleria, em princípio e bem vistas as coisas, à consulta do processo no escritório do mandatário ou representante, e não se compagina com as exigências de confiabilidade e cuidados na concentração da prova que devem rodear a intangibilidade, preservação e intocabilidade dos interesses que a lei pretende tutelar (Neste sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/01/2010 in www.dgsi.pt que relaciona o acesso à consulta do processo de promoção e protecção por via do CITIUS com a salvaguarda do superior interesse do menor:

«1. Segundo os nº 1 e 4 do artigo 88º do Dec.-Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, o processo de promoção e protecção reveste carácter reservado, o que não obsta a que a criança ou jovem possam consultar o processo através do seu advogado ou pessoalmente se o juiz autorizar, atendendo à sua maturidade, capacidade de compreensão e natureza dos factos.

2. A natureza reservada do processo de promoção e protecção de menores tem em vista garantir, para além da protecção da identidade dos adoptantes e dos pais naturais do adoptando, uma forte protecção da intimidade, do direito à imagem e da reserva da vida privada do menor.

3. Tal nível de protecção não se pode traduzir num obstáculo ao acesso do advogado do menor aos elementos do processo, mormente os de natureza probatória, em que se alicerçou ou se possa alicerçar a convicção do tribunal.

4. Porém, não será lícita uma consulta aberta e ilimitada por via da aplicação informática CITIUS, não obstante esta se traduzir numa maior facilidade de acesso, na medida em que esta não permita fazer o controlo judicial do acesso aos elementos do processo, em especial quanto à extracção das respectivas cópias.

5. Os direitos de defesa ficarão suficientemente garantidos pela consulta física dos autos pelas partes e seus advogados, nas condições previstas na lei, e pela obtenção discriminada e especialmente autorizada de certidões dos elementos relevantes para a organização da defesa, desde que não se imponham razões ponderosas de reserva que contrariem tal obtenção.»

Nessa conformidade, sempre se dirá que inexiste qualquer obstáculo legal relevante que impeça o acesso e consulta dos autos na secretaria deste tribunal, deferindo-se assim o requerido, nestes termos.”

Inconformado, o requerido BB interpôs recurso de apelação que o Tribunal da Relação …., por douto acórdão de 15/12/2020, julgou improcedente, confirmando o despacho recorrido.

Ainda irresignado, o dito requerido interpôs recurso de revista, invocando contradição com o acórdão do mesmo Tribunal, de 24/9/2020, proferido no processo n.º 257/19.3T8OBR-A.P1, e, subsidiariamente, revista excepcional.

No despacho liminar, proferido pelo aqui Relator, foi verificada a contradição de julgados e demais requisitos previstos no art.º 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, pelo que foi admitido o recurso de revista normal, interposto pelo recorrente a título principal, e foi declarado inviável o recurso de revista excepcional, admitido no Tribunal recorrido, não obstante a existência de dupla conforme, por se tratar de caso em que é sempre admissível recurso.

O recorrente apresentou alegações com as seguintes conclusões:

 “1. O recorrente considera que o presente recurso preenche os pressupostos do artigo 671º n.º 2 conjugado com a alínea d) do artigo 629º do CPC, contudo e caso assim não se entender considera ainda o recorrente que se encontram preenchidos os pressupostos para o recurso de revista extraordinário, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 672º CPC.

2. A questão fundamental de direito é saber se o mandatário de um progenitor ou menor no âmbito de um processo de protecção e promoção têm direito de escolha entre consulta presencial na secretaria ou a consulta electrónica.

3. O acórdão recorrido entende que não, o advogado só pode consultar o processo na secretaria, por sua vez o acórdão proferido pela 2 secção do Tribunal da Relação no Porto, no âmbito do processo n.º 257/19.3T8OBR-A.P1.P1, ora junta e já transitado em julgado considerou que sim.

4. Nos presentes autos deve-se aplicar a lei especial- LPCJP- estabelecendo o n.º 3 do artigo 88º que “Os pais, o representante legal e as pessoas que detenham a guarda de facto podem consultar o processo pessoalmente ou através de advogado.

5. Do exposto resulta que só os mandatários ou patronos dos progenitores ou menores têm a faculdade de consultar o processo, esse acesso é vedado aos restantes profissionais do foro.

6. A questão a apreciar não é se o processo deve ser livremente consultado por qualquer advogado, mas sim se o advogado dos progenitores/menor pode consultar o processo.

7. Com o n.º 2 do artigo 164º do CPC, o legislador não pretendeu vedar o acesso desses processos a todos os advogados.

8. O caracter reservado (não público) significa apenas que os advogados que não representam as partes nesse processo não o podem consultar, e nunca vedar o acesso da consulta aos advogados que representem as partes, por uma simples razão o advogado não pode exercer a seu mandato se NÃO CONHECER o processo.

9. Do exposto resulta que a patrona do recorrente pode consultar o processo não há nada na lei que o proíba.

10. O legislador deu a opção aos advogados de consultar o processo presencialmente na secretaria ou via electrónica é um direito do advogado e o tribunal tem de aceitar a opção do advogado, não pode impor a consulta presencial na secretaria.

11. Para decidir e zelar pelos interesses do menor, os Srs. Juízes, os Srs. Juízes Desembargadores, os Srs. Procuradores, os Srs. funcionários, e, pasme-se, os Srs. Advogados (do processo) têm de ter acesso ao processo.

12. O Acórdão recorrido mostra, claramente, que o tribunal continua preso ao “antigamente”, na época em que não havia sistema informático, em que a consulta electrónica não era possível…

13. Contudo o recorrente informa que estamos em 2020, o tribunal não pode ficar retido ao pensamento de antigamente, ou, mais grave, considerar que a advogado é uma pessoa de má fé e que vai imprimir e espalhar pela comunidade elementos privados da vida do menor.

14. O advogado está sujeito ao sigilo profissional e a mera dúvida que se encontra pasmada no acórdão recorrido representa bem o desprestígio em que se encontra a classe dos advogados.

15. O legislador considerou que o processo de protecção e promoção devia ser tramitado electronicamente, e como tal o tribunal tem de respeitar as normas legais.

16. A consulta electrónica por ser electrónica não deixa de ser uma consulta permitida nos termos do n.º 3 do artigo 88º da LPCJP.

17. O acórdão refere que “o recurso a um acórdão de 2010, ainda mais relatado por um ilustre desembargador, actualmente Conselheiro do STJ em nada desmerece o despacho recorrido, por mais importante que a data do acórdão é o seu conteúdo.”

18. Ora o mais importante é a legislação em vigor e não o conteúdo de um acórdão, a jurisprudência em Portugal não é lei, os despachos sentenças, acórdãos, devem estar fundamentados com base na lei e não em jurisprudência ultrapassada, sem que isso represente qualquer desmérito para o relatar do acórdão.

19. Desde 2010 até à presente data houve alterações legislativas (nomeadamente ao CPC, Portaria 280/13 e 26.8) e, como tal, o conteúdo do acórdão deixou de fazer sentido!!!

20. A consulta electrónica é mais vigiada que a consulta presencial, o acesso ao processo fica registada pelo que o argumento que o tribunal não pode acautelar e zelar pelo caracter reservado não existe, o próprio sistema foi pensado de forma a assegurar essa realidade.

21. Refere o acórdão recorrido que as consultas electrónicas aplicam-se as restrições de acesso a consulta legalmente prevista, sucede que a patrona do recorrente tem o direito de consultar o processo pelo que não se verifica qualquer restrição.

22. A portaria visou conceder O DIREITO DE OPÇAO aos advogados e não ao tribunal, cabe ao advogado escolher entre consultar o processo na secretaria ou por via electrónica.

23. Com o presente recurso o recorrente não pretende que o processo se torne livre e irrestrito mas unicamente que a sua patrona o posso consultar electronicamente.

24. Salienta ainda o acórdão recorrido que não se afigura o incómodo que a consulta possa acarretar belisque minimamente os direitos dos mandatários em aceder ao processo, ora essa afirmação retrata bem que o tribunal desconhece por completo a importância do advogado nesses processos, na diminuição dos conflitos familiares, no apoio que presta aos seus clientes/beneficiários, tudo de forma a proteger o interesse do menor.

25. Se o mandatário tiver devidamente informado consegue dirimir os conflitos, antecipar condutas impróprias, é impossível o advogado consultar o processo presencialmente todos os dias.

26. Conforme bem refere o acórdão de Setembro de 2020 “O art. 88º, nº 1 da LPCJP [Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo] estatui que «o processo de promoção e proteção é de carácter reservado», sucedendo, porém, que os pais, o representante legal e as pessoas que detenham a guarda de facto do menor podem consultar o processo pessoalmente ou através de advogado [nº 3 do mesmo preceito], … Por seu turno, o art. 27º, nº 1 da Portaria nº 280/13, de 26.8. preceitua o seguinte no seu nº 1: «1. A consulta de processos por parte de advogados e solicitadores é efetuada: a) Relativamente à informação processual, incluindo as peças e documentos, existentes em suporte eletrónico, através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, com base no número identificador do processo; ou b) Junto da secretaria.» E depois o nº 3 desta mesma norma diz-nos que à consulta eletrónica dos processos se aplicam as restrições de acesso e consulta legalmente previstas.”

27. Aditando que “Porém, o acesso aos autos surge como limitado nos casos em que a divulgação do seu conteúdo possa causar dano à dignidade das pessoas, à intimidade da vida privada ou familiar ou à moral pública, ou pôr em causa a eficácia da decisão a proferir – cfr. art. 164º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil. Por isso, o fundamento da tutela da dignidade e da intimidade das pessoas e da vida privada ou familiar leva a que o acesso aos autos seja limitado nos casos de processos de anulação de casamento, divórcio, separação de pessoas e bens e que respeitem ao estabelecimento ou impugnação de paternidade [art. 164º, nº 2, al. a)], tal como o restringe também nos casos de processos respeitantes ao acompanhamento de maior [art. 164º, nº 2, al. d)].2 Sucede que sendo a enumeração dos processos em que ocorrem restrições à publicidade, contida no art. 164º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil, meramente exemplificativa, como flui da utilização do advérbio «designadamente», não poderão deixar de nela ser integrados os processos de promoção e proteção, desde logo pelo seu carácter reservado decorrente do art. 88º, nº 1 da LPCJP. No entanto, aqui chegados, importa referir que na decisão singular proferida pelo presente relator em 3.8.2020, em que se aderiu à argumentação expendida pelo Min. Público na sua resposta, não se atentou devidamente na parte final da alínea a) do nº 2 do art. 164º do Cód. de Proc. Civil, onde se estatui que aos processos de anulação de casamento, divórcio, separação de pessoas e bens e que respeitem ao estabelecimento ou impugnação de paternidade, e onde também se deverão incluir os processos de promoção e proteção, apenas podem ter acesso as partes e os seus mandatários. Ou seja, neste preceito, e relativamente a estes processos, a tutela da dignidade e da intimidade das pessoas afasta a consulta por parte de qualquer terceiro, mas não pelas partes e pelos seus mandatários. Assim sendo, ao invés do que fora anteriormente entendido pelo ora relator, impõe-se agora, em sede de acórdão a proferir nos termos do art. 652º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil, conceder à patrona nomeada ao menor a possibilidade de consulta eletrónica dos autos, o que significará a procedência do recurso interposto”

28. Por tudo o exposto, o acórdão deve ser revogado por violar o n.º 2 do artigo 88º da LPCJP, artigo 164 n.º 2 a) do CPC e Portaria 280/13 e 26.8.

Assim, e face a toda a retórica supra vertida, deve ser dado provimento ao recurso e revogada o acórdão proferido, como é JUSTIÇA.”

O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação contra-alegou sustentado a rejeição da revista excepcional, por falta de certificação do trânsito em julgado do acórdão fundamento, e da revista normal, por verificação da dupla conforme, questões prévias estas que se mostram ultrapassadas quer pela junção da certidão, com nota do trânsito em julgado, cuja falta foi acusada, quer pelo despacho do Relator, oportunamente proferido.

 Tudo visto, verificando-se a invocada contradição, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.

Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se a ilustre Patrona do progenitor da menor tem direito a consultar electronicamente o processo de promoção e protecção acima identificado.


II. Fundamentação

1. De facto

Os factos a considerar na decisão deste recurso são os que resultam do relatório acabado de elaborar, já que outros não foram dados como provados.

2. De direito

Sob a epígrafe “Caráter reservado do processo”, o art.º 88.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, e que dela faz parte integrante, dispõe:

“1 - O processo de promoção e proteção é de caráter reservado.

2 - Os membros da comissão de proteção têm acesso aos processos em que intervenham, sendo aplicável, nos restantes casos, o disposto nos n.ºs 1 e 5.

3 - Os pais, o representante legal e as pessoas que detenham a guarda de facto podem consultar o processo pessoalmente ou através de advogado.

4 - A criança ou jovem podem consultar o processo através do seu advogado ou pessoalmente se o juiz ou o presidente da comissão o autorizar, atendendo à sua maturidade, capacidade de compreensão e natureza dos factos.

5 - Pode ainda consultar o processo, diretamente ou através de advogado, quem manifeste interesse legítimo, quando autorizado e nas condições estabelecidas em despacho do presidente da comissão de proteção ou do juiz, conforme o caso.

6 - Os processos das comissões de proteção são destruídos quando a criança ou jovem atinjam a maioridade ou, nos casos da alínea d) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 63.º, os 21 anos ou 25 anos, respetivamente.

7 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a informação a que alude o disposto no n.º 1 do artigo 13.º-A é destruída assim que o processo ao abrigo do qual foi recolhida seja arquivado, pelo facto de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir.

8 - Em caso de aplicação da medida de promoção e proteção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º, deve ser respeitado o segredo de identidade relativo aos adotantes e aos pais biológicos do adotado, nos termos previstos no artigo 1985.º do Código Civil e nos artigos 4.º e 5.º do Regime Jurídico do Processo de Adoção, aprovado pela Lei n.º 143/2015, de 8 de setembro, e, salvo disposição especial, os pais biológicos não são notificados para os termos do processo posteriores ao trânsito em julgado da decisão que a aplicou.

9 - Quando o processo tenha sido arquivado nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 21.º, é destruído passados dois anos após o arquivamento.”

Por outro lado, o art.º 27.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, que regula a tramitação electrónica dos processos judiciais, sob a epígrafe “Consulta de processos por parte de advogados e solicitadores”, estabelece:

1- A consulta de processos por parte de advogados e solicitadores é efetuada:

a) Relativamente à informação processual, incluindo as peças e os documentos, existentes em suporte eletrónico, através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, com base no número identificador do processo; ou

b) Junto da secretaria.

2 - O acesso ao sistema informático de suporte à atividade dos tribunais para efeitos de consulta de processos requer o prévio registo dos advogados e solicitadores, nos termos do n.º 2 do artigo 5.º.

3 - À consulta eletrónica de processos aplicam-se as restrições de acesso e consulta legalmente previstas.

4 -…”

Ao estabelecer o carácter reservado ao processo judicial de promoção e protecção nos termos referidos no art.º 88.º, acima transcrito, foi propósito do legislador salvaguardar os princípios orientadores do superior interesse da criança e do jovem e a sua intimidade, direito à imagem e reserva da vida privada, que também fixou como princípios orientadores da intervenção no art.º 4.º, als. a) e b), da LPCJP.

Aquela norma atribui, assim, natureza reservada ao processo judicial de promoção e proteção, cingindo o acesso e a consulta apenas a um conjunto restrito de interessados, nos termos nela referidos.

Não há dúvida de que, nos termos do seu n.º 3, os pais “podem consultar o processo pessoalmente ou através de advogado”.

Coloca-se a questão de saber qual é o verdadeiro sentido do direito à consulta, ínsito no citado art.º 88.º, ou seja, se deve entender-se que abrange apenas o processo físico (como, aliás foi reconhecido ao recorrente) ou se também abrange a consulta electrónica.

Apesar de não ser unânime o entendimento sobre esta questão, consideramos que o direito à consulta, detalhadamente regulado no citado art.º 88.º, é stricto sensu, estando confinado ao acesso físico do processo na própria secretaria judicial, como, aliás, foi decidido no acórdão recorrido e no despacho que apreciou, seguindo e adoptando a orientação jurisprudencial constante do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/1/2010, proferido no processo n.º 487/08.3TMLSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt.

Outros acórdãos consideraram a consulta do processo restrita ao acesso físico na secretaria do tribunal onde se encontre, considerando-o o único meio adequado a assegurar o carácter reservado do processo, ora por “controlar o risco de divulgação dos seus elementos”[3], ora por aquela estar detalhadamente regulamentada no art.º 88.º da LPCJP, não estando aí prevista a consulta fora da secretaria[4].

No mesmo sentido, ver Elisa Sofia Martins da Encarnação, Mestrado Forense n.º 142717006, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito e Processo Civil sob a orientação da Professora Doutora Ana Filipa Morais Antunes, págs. 36, 37 e 43, em 29 de Março de 2019 – Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica, in https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/28219/1/Disserta%...

Consideramos, tal como a jurisprudência e a doutrina acabada de mencionar, que o art.º 88.º da LPCJP consagra o direito de acesso ao processo de promoção e protecção, pelas entidades nele indicadas, em sentido restrito, por ser o único meio adequado a assegurar o carácter reservado do processo nele contemplado. O regime do acesso e consulta eletrónica ao processo, previsto na Portaria n.º 280/2013, de forma ilimitada e muito abrangente, “contende com o caráter reservado do processo de promoção e proteção, na medida em que restringe a possibilidade de controlo prévio pelo tribunal, quanto ao seu destino e à retirada de cópias não autorizadas.”

O art.º 27.º, n.º 1, al. a), da citada Portaria não afasta este entendimento, porquanto o n.º 3 do mesmo preceito manda aplicar “as restrições de acesso e consulta legalmente previstas”.

Acresce que, inserindo-se o referido art.º 88.º no âmbito do processo judicial de promoção e protecção, o qual, como se sabe, é um processo especial de jurisdição voluntária, jamais pode ser derrogado pela norma geral do art.º 164.º, n.º 2, al. a), do CPC e assim permitir ressalvar as restrições à publicidade, previstas na parte final, às partes e seus mandatários (cfr. art.º 100.º da LPCJP e art.ºs 549.º, n.º 1 e 986.º a 988.º, do CPC).

 Deste modo, está vedada a consulta electrónica pela ilustre Patrona do recorrente, como bem se decidiu no acórdão recorrido.

Como ali se referiu, trata-se de “proteger os superiores interesses dos menores sujeitos a medidas de promoção e protecção, sem que isso ponha em causa o direito de consulta do processo que aos mandatários assiste.

Não se afigura que o incómodo que a consulta do processo na secretaria possa acarretar belisque minimamente os direitos dos mandatários em aceder ao processo.

Trata-se de uma limitação perfeitamente justificada face o interesse que se pretende tutelar.”

Nada mais, nomeadamente que se trate de “desconsiderar qualquer classe profissional”, que, como é óbvio, merece todo o respeito.

A crítica que é feita ao uso do acórdão de 2010 não faz qualquer sentido, pois, além de manter “plena actualidade”, vem sendo adoptada noutras decisões jurisprudenciais e por alguma doutrina, como elementos interpretativos da lei.

Improcedem, assim, as conclusões recursórias do recorrente.

O recurso não merece, pois, provimento, devendo manter-se o acórdão recorrido.

Sumário:

1. O carácter reservado do processo de promoção e protecção apenas permite a consulta do processo físico, na secretaria do tribunal onde se encontre, às pessoas e nos termos previstos no art.º 88.º da LPCJP.

2. Enquanto norma especial, esta norma não é afastada por outra disposição geral ou comum, nomeadamente pelo art.º 164.º, n.º 2, al. a), do CPC e art.º 27.º, n.º 1, al. a), da Portaria n.º 280/13, de 26 de Agosto.

3. Não tem direito à consulta electrónica do processo de promoção e protecção o mandatário/patrono dos pais do menor.


III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em negar a revista e manter o acórdão recorrido.


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Custas pelo recorrente (art.º 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).

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STJ, 23 de Fevereiro de 2021


Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar.


Fernando Augusto Samões (Relator)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)

___________

[1] Do Tribunal Judicial da Comarca do …. – Juízo de Família e Menores … - Juiz …...
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães
[3] Cfr. Ac. TC n.º 62/2017, proc.º 605/16, 1.ª Secção.
[4] Cfr. Ac. TRL 25/10/2012, processo n.º 355/07.6TBPTS-A.L1-6, in www.dgsi.pt.